Este artigo não é sobre a guerra entre Rússia e Ucrânia ou entre Israel e a o Estado da Palestina; não iremos adentrar no conflito geopolítico alimentado por anos entre os países do leste europeu e do oriente médio, e que eclodiram nos últimos tempos deixando o mundo sob alerta. Vamos falar sobre uma das piores formas de dominação dos corpos minorizados em momentos de batalhas: o estupro.

É sabido que a cultura patriarcal dominante, de forma desmesurada, pratica violências contra corpos lidos social e culturalmente como femininos e, em diversos contextos e na maioria das sociedades; essa predominância considerou as mulheres como “cidadãs de segunda classe”. Não é de se estranhar, então, que dentro do locus social as mulheres sejam objetificadas e em situações de guerras, elas – assim como as crianças e as pessoas mais vulneráveis -, tornam-se alvos das vilanias e dos horrores dos conflitos.

Na modernidade, para conter as violências sexuais, foi criado o Direito Humanitário Internacional ou Direito Internacional dos Conflitos, que está inserido dentro do escopo do direito universal. A cultura do estupro não se limita apenas ao período de guerra e, evidentemente, afeta as relações sociais de ordens distintas.

Dia desses acompanhamos estarrecidos o caso que envolveu a jovem Mariana Ferrer, cuja audiência de instrução e julgamento, em vez de julgar o réu, culpabilizou a vítima, que saiu de lá humilhada, oprimida e estigmatizada pelas perguntas violentas feitas por todo corpo jurídico. Com o objetivo de coibir práticas como essa, foi apresentado o Projeto de Lei N. 03/2023º, da lavra da deputada Maria do Rosário, a fim de proteger a vítima e evitar a revitimização da vítima, ou seja, evitar que ela passe por mais sofrimento, quem deve estar no banco dos réus é o agressor e não a vítima. Outro episódio emblemático e que cobriu o cenário midiático da atualidade foi a condenação, na Itália em 9 anos de prisão – pela participação de um estupro coletivo –, do jogador de futebol Robinho. Mas o atleta foi julgado à revelia, já que o mesmo se mandou para baixo do tapete da impunidade, buscando proteção no Brasil, país que não extradita cidadãos natos. Porém, uma brecha na Lei de Imigração 13.445/2017, e uma extensão no seu sentido interpretativo, que prevê a aplicação da TEP (Transferência de Execução de Pena), nos moldes do artigo 100 a 102 da referida lei.

O estuprador seguia livre, leve e solto, inclusive, deu uma entrevista em um canal de TV, e sugeriu que sua condenação só ocorreu por ele ser um homem negro, alegando racismo na condenação, fala extremante perigosa: puxar a pauta racial como cortina de fumaça para o crime por ele cometido. Sinto em informá-lo, como mulher negra e estudiosa das relações raciais, este artifício não convence, tendo em vista que o ex-jogador acolheu as práticas patriarcais e fez sua escolha individual. Nunca nesses anos enquanto figura pública, Robinho levantou a bandeira contra o racismo, mas lembrou de sua existência quando condenando por um estupro que ficou comprovado que ele praticou.

No último dia 21 de março de 2024, o STJ (Superior Tribunal de Justiça), formou maioria e validou, por 9 votos contra 2, a sentença que condenou o jogador na Itália, o mandado de prisão foi cumprido e jogador iniciou o cumprimento da pena no Presídio de Tremembé/SP. Aqui no Brasil, estupro é crime é hediondo e crime hediondo, para lei brasileira, não cabe fiança. Sabemos, historicamente, que homens negros foram acusados injustamente de serem estupradores. A acusação era uma das tecnologias utilizadas pelo sistema racista para retirar homens negros de circulação. Contudo, sabemos também, que alguns reproduzem os mecanismos de opressão. Em “Eu sei por que o pássaro canta na gaiola”, Maya Angelou, foi corajosa ao revelar ao mundo a violência sexual pela qual passou e que veio de um igual. Voltando ao ex-jogador: é preciso ter responsabilidade para não agenciar pautas tão caras de forma equivocada. A sua prisão para iniciar cumprimento da pena, deu à vítima uma resposta ao crime por ela sofrido.

Importante salientar que este caso não é um fato isolado. Há inúmeros crimes sendo noticiados nas trincheiras esportivas. Recentemente acompanhamos o caso do jogador Daniel Alves, acusado de estupro na Espanha, foi preso e enquanto aguardava o julgamento, deu diversas versões sobre os fatos e sempre culpabilizando a vítima, em algumas das versões, declarou que a culpa dos seus atos se deu em razão da ingestão de bebida alcoólica.

O jogador foi condenado pela prática do crime e teve a pena diminuída em virtude do pagamento de uma fiança. Noticiou-se que o seu amigo Neymar o ajudou financeiramente para isso, demostrando desse modo, uma solidariedade masculina. Não obstante à diminuição da pena em face de um valor monetário, dias atrás, a justiça espanhola deu ao condenado a possiblidade de cumprir a pena em liberdade mediante o pagamento de um milhão de dólares. No mesmo instantes, noticiou-se que uma vez mais a família Neymar pagaria o valor para ver Daniel livre. Contudo, diante de um forte clamor popular, o pai do jogador Neymar, deu declarações negando que pagaria a fiança de Alves. —Perda de contratos ou de fato nunca houve essa proposta? Nunca saberemos.

O que sabemos é que ambos os acontecimentos envolvendo os futebolistas se deram em cenários regados a bebidas alcoólicas. Necessário pontuar que não há uma relação direta entre o consumo de álcool e a violência contra a mulher. Entretanto, é fundamental trazer à pauta que, o cometimento de crimes após a ingestão de substâncias etílicas (ou ilícitas), não isenta o agressor da responsabilidade prevista na Lei. Há de se salientar que, no Brasil, os crimes contra a dignidade sexual estão previstos nos artigos 213 a 218-C, do Código Penal, os quais, implicam, não somente em conjunção carnal. —Um beijo sem concordância também é considerado como ato libidinoso. Portanto, rapazes: —não é não!

A sociedade brasileira foi fundamentada no estupro de mulheres pertencentes aos povos originários e das mulheres negras escravizadas. Hoje, a cada 8 horas, uma mulher é vítima de violência, principalmente a sexual, sendo as mulheres negras e as crianças as mais vulneráveis. Durante a pandemia, o número de abusos aumentou, mesmo com a subnotificação dos casos os dados são alarmantes. Até aqui, casos reais e a ficção nos apresenta diversos casos de estupros, seja em contexto de guerra ou relações intrafamiliares.

Em “Um defeito de cor”, de Ana Maria Gonçalves, já de início a cena da violência sexual direcionada às personagens KehindeTaiwo* e sua mãe Dúróoríìke, vítimas dos guerreiros do rei Adondozan; nos localiza nesse lugar de desumanização das mulheres através do estupro, utilizado como tecnologia de subjugação e invalidação do corpo feminino. 

O Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2023, apontou que foram registrados mais de 56 mil casos de vulneráveis em 2022, 8,6% a mais que 2022. As vítimas, tinham no máximo 13 anos de idade e os principais autores da violência eram familiares da vítima.

Voltando à gramática literária, em “Telhado quebrado com gente morando dentro”, Jarid Arraes, nos apresenta Juliana, uma adolescente que vê sua inocência ser subtraída pelo genitor. A autora denuncia os milhares de estupros praticados no Brasil contra crianças e adolescentes, cujos agressores são parentes ou pessoas próximas do convívio das vítimas. O inimigo realmente, mora ao lado.

Conceição Evaristo, no conto, “Aramides Florença”, nos insere em umas das cenas mais duras: a personagem nos conta de forma pungente e dolorosa a violência sexual praticada contra ela pelo seu companheiro em pleno puerpério:

“Numa sucessão de gestos violentos, ele me jogou sobre a cama, rasgando minhas roupas e tocando violentamente com a boca um dos meus seios que já estavam descobertos, no ato de amamentação do meu filho. E, dessa forma, o pai de Emildes me violentou. E, em mim, o que ainda doía, um pouco pela passagem do meu filho, de dor aprofundada sofri, sentindo o sangue jorrar.” Conceição Evaristo (2020).

A violência não encontra parâmetros e nem limites, é tacanha e perversa. O estupro conjugal é mais comum do que pensamos, muitas vítimas, não se percebem dentro desse lugar de violência. Mas é um tema que para além da literatura, está na seara de discussão na atualidade, vige o projeto de Lei 3470/2023 de autoria da deputada federal Iza Arruda, que tem como escopo, alterar o Código Penal, a fim de tipificar como crime o estupro marital.

Bem, leitores e leitoras, este tema tratado aqui por mim, na minha coluna inaugural, é bastante delicado, mas, quis usar esse espaço para dizer às mulheres, e as pessoas vítimas de violências sexual que elas não estão sozinhas e que poderão contar com essa escritora na luta por justiça.


Sara Araújo (Salvador, Bahia) tem 46 anos, é bacharel em Direito, licenciada em Ciências Sociais, pós-graduanda em História da África e da Diáspora Atlântica, Analista Jurídica da Defensoria Pública do Estado do Paraná. É palestrante, sommelière de cervejas, ganhadora  do Prêmio Zumbi dos Palmares (2017) pela Câmara de Vereadores de Bauru (SP), integrante da Comissão Étnico Racial Lélia Gonzáles da Associação dos servidores/as da Defensoria Pública do Estado do Paraná, colaboradora do NUDEM – Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos das Mulheres, do GT de Racialidae da Defensoria Pública do Paraná, do GT de Diversidade da ABRACERVA e integrante do coletivo Expressão Poética desde 1999. Coautora das seguintes obras: Poetas Virtuais (2000) Poêmico – Poesia em tempos pandêmicos (2021) Mãe Pretas – Maternidade Solo e Dororidade (2021) Expressinho Poético (2022) e Quando o Racismo bate à porta (2023). É colunista da Revista Philos e você pode encontrar-la nos perfis @araujojsara e @literaturanobar no instagram!


Notas: Kehinde Taiwo: personagens do livro Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves. São duas irmãs [gêmeas/ibejis] crianças entre seis e sete anos de idade.

Livros citados: Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, de Maya Angelou; Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves; Redemoinho em dia quente, de Jarid Arraes e Insubimissas lágrimas de mulheres, de Conceição Evaristo. 


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Publicado por:Philos

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